Uma análise aprofundada de documentos internos e dados de transparência do Poder Judiciário da União (PJU) revela uma realidade consolidada e sistêmica: a crescente homogeneização das atribuições entre os cargos de Técnico e Analista Judiciário. Este dossiê, com base em normas oficiais, estudos de gestão de pessoas e tabelas de lotação, demonstra como, na prática, a distinção entre os dois cargos se tornou nebulosa, com ambos os servidores desempenhando funções de complexidade e responsabilidade equivalentes em todos os ramos da Justiça Federal.
A questão, que levanta debates sobre isonomia, valorização profissional e a própria estrutura de carreiras do serviço público, é evidenciada pela forma como a Administração tem alocado sua força de trabalho, priorizando as competências individuais em detrimento das distinções formais dos cargos.
A Política por Trás da Prática: Gestão por Competências
A base para a atual dinâmica de trabalho no PJU foi lançada com a institucionalização do planejamento estratégico em 2008 e, de forma mais contundente, com a implementação da gestão por competências a partir de 2014. A Resolução CNJ nº 192/2014 estabeleceu a Política Nacional de Formação e Aperfeiçoamento dos Servidores, incentivando o mapeamento de conhecimentos, habilidades e atitudes necessários para o alcance dos objetivos estratégicos institucionais.
Vejamos alguns trechos da norma citada:
Art. 2º Para fins desta Resolução, considera-se:
[…]
III – competência: conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias ao desempenho das funções dos servidores, visando ao alcance dos objetivos estratégicos dos órgãos do Poder Judiciário;
IV – desenvolvimento de competências: processo de aprendizagem orientado para o saber, o saber fazer e o saber ser, na perspectiva da estratégia organizacional;
[…]
CAPÍTULO III – DOS PRINCÍPIOS E OBJETIVOS DA POLÍTICA NACIONAL DE FORMAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO DE SERVIDORES DO PODER JUDICIÁRIO
Art. 3º A Política Nacional de Formação e Aperfeiçoamento dos Servidores do Poder Judiciário atende aos seguintes princípios:
[…]
II – integração permanente da educação com o planejamento estratégico do Poder Judiciário, com o desenvolvimento de competências necessárias para o cumprimento da missão, alcance da visão e execução da estratégia;
[…]
Art. 4º A Política Nacional de Formação e Aperfeiçoamento dos Servidores do Poder Judiciário tem os seguintes objetivos:
[…]
III – intensificar a oferta e potencializar a qualidade das ações de educação para o cumprimento da missão, alcance da visão e execução da estratégia do Poder Judiciário;
[…]
CAPÍTULO IV – DA FORMAÇÃO E APERFEIÇOAMENTO DE SERVIDORES DO PODER JUDICIÁRIO
Art. 5º A formação e o aperfeiçoamento dos servidores terão caráter permanente, desde o ingresso no Poder Judiciário e ao longo da vida funcional.
Art. 6º A formação e o aperfeiçoamento dos servidores do Poder Judiciário serão desenvolvidos nas seguintes modalidades:
I – formação inicial;
II – formação continuada.
§ 1º A formação inicial refere-se ao desenvolvimento das competências necessárias para o desempenho das atividades inerentes às atribuições das unidades.
§ 2º A formação continuada refere-se ao desenvolvimento das competências necessárias ao longo da vida funcional do servidor e compreende:
I – ações educacionais de ordem técnica, gerencial e comportamental;
II – formação de multiplicadores; e
III – programas de pós-graduação lato e stricto sensu.
Art. 7º As unidades de formação oferecerão ações educativas para o desenvolvimento das competências necessárias ao alcance dos objetivos estratégicos definidos pelo Tribunal.
Parágrafo único. Os tribunais devem, na medida do possível, ofertar aos servidores com mudança de lotação para unidades judiciárias de diferente especialidade ou competência, ações de aperfeiçoamento que viabilizem o exercício das novas atribuições. (Acrescentado pela Resolução n. 246, de 8.5.18)
[…]
CAPÍTULO – VI DAS DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 19. Sem prejuízo do Plano Estratégico de Formação e Aperfeiçoamento de Servidores elaborados e mantidos pelos tribunais, o Conselho Nacional de Justiça coordenará a instituição do Plano Estratégico Nacional, comum a todos os tribunais. (Redação dada pela Resolução n. 246, de 8.5.18)
[…]
§ 2º O Plano Estratégico Nacional está descrito no Anexo desta Resolução, e terá suas metas revistas a cada biênio. (Acrescentado pela Resolução n. 246, de 8.5.18)
[…]
ANEXO INCLUÍDO PELA RESOLUÇÃO N. 246, DE 08 DE MAIO DE 2018
Plano Estratégico Nacional de Formação e Aperfeiçoamento dos servidores do Poder Judiciário
MAPA ESTRATÉGICO
Princípios da Política de Formação e Aperfeiçoamento
- Educação permanente
- Integração com o planejamento estratégico
- Responsabilidade compartilhada e colaborativa entre gestor, servidor, unidade de formação e alta administração
- Servidor como agente de inovação e aperfeiçoamento institucional e social
- Valorização da gestão do conhecimento
- Valorização da gestão por competências
- Oportunidades igualitárias
- Inovação
[…]
Tema:
Fomento ao Desenvolvimento Profissional
- Objetivo Estratégico 01: Oferecer instrumentos para a promoção na carreira e para a educação profissional, inicial e continuada, fundada em gestão por competência.
- Descrição do Objetivo: Abrange políticas e diretrizes para promoção na carreira, recursos para capacitação e para adicional de qualificação.
[…]
Com base nos trechos da Resolução CNJ nº 192, fica evidente que a política de desenvolvimento de pessoas do Poder Judiciário da União foi estruturada para valorizar a “competência” — entendida como o conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes — em detrimento da rigidez dos cargos. Ao atrelar a formação permanente, desde a inicial até a continuada, diretamente ao planejamento estratégico e às metas institucionais, a norma cria um sistema de incentivos que transcende a distinção formal entre Técnico e Analista. O fomento ao desenvolvimento profissional, com a promessa de promoção e qualificação, passa a ser um convite aberto e com “oportunidades igualitárias” a todos os servidores. Dessa forma, a administração incentiva que qualquer servidor, independente do cargo de origem, busque adquirir as competências necessárias para que as unidades judiciárias atinjam seus objetivos, promovendo uma força de trabalho versátil e alinhada com os resultados esperados, onde o que importa é a capacidade de “saber fazer” para o sucesso da organização.
Essa abordagem, focada em resultados e eficiência operacional, levou à adoção de um “modelo de transversalidade das competências”. Conforme o manual de Gestão por Competências do TJDFT¹, as competências passaram a ser adequadas a qualquer contexto de trabalho no tribunal, independentemente do cargo. A diferenciação passou a ser feita entre servidores e gestores, e não mais pelos processos de trabalho, que se encontram em constante mudança devido à automação.
Essa política é reforçada pela Resolução CNJ nº 219/2016, que estabelece parâmetros para a distribuição da força de trabalho com base na demanda de processos, sem fazer distinção entre a necessidade de analistas ou técnicos. O cálculo do Índice de Produtividade dos Servidores (IPS), por exemplo, considera a força de trabalho de forma homogênea, importando apenas a capacidade da unidade em baixar processos.
Vejamos alguns trechos da norma citada:
CAPITULO I DISPOSIÇÕES GERAIS
[…]
Art. 1º A distribuição e a movimentação de servidores, de cargos em comissão e de funções de confiança nos órgãos do Poder Judiciário de primeiro e de segundo graus obedecerão às diretrizes estabelecidas nesta Resolução.
Parágrafo único. A presente Resolução aplica-se, no que couber, à Justiça Eleitoral e à Justiça Militar da União.
Art. 2º Para fins desta Resolução, consideram-se:
I – Áreas de apoio direto à atividade judicante: setores com competência para impulsionar diretamente a tramitação de processo judicial, tais como: unidades judiciárias de primeiro e de segundo graus, protocolo, distribuição, secretarias judiciárias, gabinetes, contadoria, centrais de mandados, central de conciliação, setores de admissibilidade de recursos, setores de processamento de autos, hastas públicas, precatórios, taquigrafia, estenotipia, perícia (contábil, médica, de serviço social e de psicologia), arquivo;
II – Unidades judiciárias de primeiro grau: varas, juizados, turmas recursais, zonas eleitorais e Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs), compostos por seus gabinetes, secretarias e postos avançados, quando houver;(Redação dada pela Resolução nº 282, de 29.03.2019)
III – Unidades judiciárias de segundo grau: gabinetes de desembargadores e secretarias de órgãos fracionários (turmas, seções especializadas, tribunal pleno etc), excluídas a Presidência, a Vice-Presidência e a Corregedoria;
IV – Áreas de apoio indireto à atividade judicante (apoio administrativo): setores sem competência para impulsionar diretamente a tramitação do processo judicial e, por isso, não definidas como de apoio direto à atividade judicante;
V – Lotação paradigma: quantitativo mínimo de servidores das unidades judiciárias de primeiro e de segundo graus; VI – Índice de Produtividade de Servidores (IPS): índice obtido a partir da divisão do total de processos baixados no ano anterior pelo número de servidores, conforme fórmula constante do Anexo I;
[…]
CAPITULO II – DA DISTRIBUIÇÃO DE SERVIDORES, CARGOS EM COMISSÃO E FUNÇÕES DE CONFIANÇA
Seção I – Da distribuição de servidores das áreas de apoio direto à atividade judicante entre primeiro e segundo graus
Art. 3º A quantidade total de servidores das áreas de apoio direto à atividade judicante de primeiro e de segundo graus deve ser proporcional à quantidade média de processos (casos novos) distribuídos a cada grau de jurisdição no último triênio, observada a metodologia prevista no Anexo III.
Seção II – Da distribuição de servidores nas unidades judiciárias do mesmo grau de jurisdição
Subseção I – Da definição das unidades semelhantes e da lotação paradigma
Art. 5º Os tribunais devem agrupar as unidades judiciárias de primeiro e de segundo graus por critérios de semelhança relacionados à competência material, tipo de tramitação processual (juízo 100% digital e núcleo de justiça 4.0), base territorial, volume processual, entrância ou outro parâmetro objetivo a ser por eles definido. (redação dada pela Resolução n. 553, de 11.4.2024)
§ 1º Não havendo unidade semelhante, caberá ao tribunal estipular o critério para a definição da lotação paradigma.
§ 2º O Conselho da Justiça Federal e o Conselho Superior da Justiça do Trabalho podem definir o agrupamento de que trata o caput, a fim de conferir uniformidade nos tribunais dos respectivos segmentos da Justiça.
§ 3º Os tribunais poderão utilizar sistemática de pesos por nível de complexidade processual definidos pelo CNJ, inclusive os decorrentes de diferentes classes e assuntos, em substituição ou em complemento ao critério do agrupamento de unidades judiciárias semelhantes, de forma a permitir a comparação entre unidades distintas. (incluído pela Resolução n. 553, de 11.4.2024)
Art. 6º Realizada a distribuição proporcional de servidores prevista na Seção I deste Capítulo e o agrupamento de que trata o artigo anterior, o tribunal deve definir a lotação paradigma das unidades semelhantes, considerando a quantidade média de processos (casos novos) distribuídos a essas unidades no último triênio ou outro parâmetro objetivo definido pelo tribunal.
[…]
Subseção II – Da aplicação da lotação paradigma dos servidores das unidades judiciárias de primeiro e de segundo graus
Art. 7º Os servidores das unidades judiciárias de primeiro e segundo graus serão lotados até atingir a lotação paradigma de cada unidade e de modo que nenhuma fique com déficit ou superávit maior do que 1 (um) servidor.
§ 1º Quando não for possível atingir a lotação paradigma de todas as unidades, serão priorizadas as unidades judiciárias de primeiro e de segundo graus com maior déficit de pessoal em relação à respectiva lotação paradigma e, havendo empate, será priorizada a unidade que se encontre há mais tempo com o déficit. (incluído pela Resolução n. 553, de 11.4.2024)
[…]
Seção III – Dos servidores das áreas de apoio indireto à atividade judicante
Art. 11. A quantidade total de servidores lotados nas áreas de apoio indireto à atividade judicante (apoio administrativo) deve corresponder a, no máximo, 30% (trinta por cento) do total de servidores.
[…]
Art. 13-A. Na fixação das lotações paradigmas das unidades de primeiro grau, devem sempre ser reservados cargos e/ou funções a serem ocupadas por servidores e/ou servidoras que irão prestar serviços de assessoramento direto aos juízes e juízas, de forma que os ocupantes não sejam computados para a quantidade de pessoas da lotação paradigma. (incluído pela Resolução n. 553, de 11.4.2024)
[…]
§ 3º Deve-se assegurar a todos os magistrados e magistradas, independentemente de sua classe e condição funcional, o direito de escolha dos servidores e/ou servidoras que irão prestar-lhe assessoramento de forma permanente garantindo-lhe inclusive o acompanhamento do servidor ou da servidora assistente em caso de remoção, independente de concurso de remoção. (incluído pela Resolução n. 553, de 11.4.2024)
A análise da Resolução CNJ nº 219/2016 revela a institucionalização de um modelo de gestão de pessoas estritamente quantitativo e focado em produtividade, que, em sua essência, torna funcionalmente irrelevante a distinção entre os cargos de Técnico e Analista para fins de lotação e distribuição da força de trabalho.
Ao criar mecanismos como a “Lotação Paradigma” e o “Índice de Produtividade de Servidores” (IPS), a norma estabelece que o número de servidores em uma unidade deve ser proporcional à demanda de processos. O IPS, em particular, ao calcular a produtividade dividindo o total de processos baixados pelo número de servidores, trata toda a força de trabalho como uma unidade homogênea de produção, onde cada servidor, independentemente do cargo, representa uma variável idêntica na equação da eficiência. Essa metodologia, portanto, não apenas permite, mas incentiva a administração a alocar “servidores” — e não “Técnicos” ou “Analistas” — nas unidades com maior deficit, consolidando normativamente a prática de utilizar ambos os cargos de forma intercambiável para o cumprimento das metas processuais.
Raio-X da Homogeneização: Os Dados Revelam a Realidade
Nos portais de transparência dos tribunais, em face da determinação contida no art. 1º da Resolução CNJ nº 102, há publicação de relação de membros e demais agentes públicos, contendo o nome de servidor, matrícula, cargo efetivo, lotação atual e se está exercendo função ou cargo de confiança. A partir desses dados, foram produzidas as tabelas com número de servidores total (entre efetivos e não efetivos), os números de Técnicos e Analistas, quantos não ocupam (SF) e quantos ocupam as funções de confiança (FC) e os cargos comissionados (CJ) disponíveis nas unidades investigadas de órgãos de primeira, segunda e terceira instâncias da Justiça Federal, do Trabalho, Eleitoral, Militar, Supremo Tribunal Federal (STF) e Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT).
Esses documentos, de livre consulta nos portais de transparência, são a prova material da fusão de atribuições. Elas demonstram que, em todos os ramos e instâncias do PJU, Técnicos e Analistas não apenas dividem o mesmo espaço físico, mas também as mesmas responsabilidades, incluindo as mais elevadas Funções Comissionadas (FC) e Cargos em Comissão (CJ).
Figura – Modelo do documento constante de determinação da Res. CNJ 102

As tabelas produzidas a partir da análise dos documentos coletados são do período de dezembro de 2024 e primeiro trimestre de 2025.
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Destaques da Análise de Dados:
- Ausência de Setores Exclusivos: Em praticamente todas as unidades pesquisadas, desde Varas de primeira instância até gabinetes de ministros, há servidores de ambos os cargos trabalhando em conjunto. Não há, na prática, setores restritos a Técnicos ou a Analistas.
- Técnicos em Cargos de Alta Gestão: As tabelas desmistificam a noção de que posições de chefia e assessoramento são privilégio de Analistas.
- Na Justiça Eleitoral (TRE-SP), um Técnico Judiciário ocupava o cargo de Secretário (CJ-3) no Gabinete da Presidência e outro na Corregedoria Regional Eleitoral. No primeiro grau, tanto Analistas quanto Técnicos exerciam a função de Chefe de Cartório (FC-6).
- Na Justiça do Trabalho (TRT-10), a situação é emblemática. Nas Varas do Trabalho de Brasília, foram registrados cinco Técnicos e cinco Analistas como Diretor de Vara (CJ-3), a mais alta função em uma unidade de primeira instância.
- No Superior Tribunal de Justiça (STJ), a análise de cargos comissionados revela uma distribuição que prioriza a competência. Em dezembro de 2024, o tribunal contava com 36 Analistas e 16 Técnicos em cargos CJ-3 (Assessor de Ministro ou Chefe de Gabinete). E no Gabinete da Presidência contava-se com 8 Analistas, dos quais 1 exercia um cargo CJ-3, e 10 Técnicos, dos quais, 3 exerciam um cargo CJ-3.
- Divisão Equilibrada de Funções Comissionadas: As FCs, que representam a divisão de trabalho nas unidades, são distribuídas indistintamente.
- No STJ, a função de Assistente II (FC-2) era ocupada por 19 Analistas e 19 Técnicos. A de Assistente IV (FC-4) por 51 Analistas e 53 Técnicos. Isso indica que, para tarefas de mesma complexidade, a administração considera ambos os cargos igualmente aptos.
- Lotação Paradigma Ignora o Cargo: A “Lotação Paradigma” (LP), número de servidores considerado ideal para uma unidade, não especifica quantos devem ser Técnicos ou Analistas.
- Na Justiça Comum do DF (TJDFT), a 1ª Vara Criminal de Brasília, com LP de nove servidores, possuía 6 Analistas e 2 Técnicos. Já a 7ª Vara Criminal, com a mesma LP de nove servidores, era composta por 9 Técnicos e nenhum Analista. Essa variação demonstra que o objetivo é atingir a meta de produtividade com nove servidores competentes, sendo indiferente o cargo que ocupam.
Contexto Legal: Uma “Injustiça Normatizada”
A isonomia funcional demonstrada nas normas de gestão de pessoas e pela prova material levantada nos portais de transparência a partir da distribuição do recurso humano perante os órgãos decorrem de um entendimento comum de que os servidores do PJU não possuem uma distinção de capacidades, decorrente do princípio da eficiência.
Esse entendimento está exposado na jurisprudência pacífica sobre a inexistência de desvio ilegal de função nos afazeres de Técnicos e Analistas, em que as atribuições descritas na lei mantêm uma relação de semelhança profunda e que a assunção de uma função gratificada, por exemplo, acessível por servidores de qualquer um dos cargos, já demonstraria a linha tênue que os separam.
Nesse sentido, a Ação Ordinária nº 5038445-05.2014.404.7100/RS, movida por uma servidora Técnica da 3ª Vara Federal de Passo Fundo/RS, em que alegava realizar, em seu dia a dia, atividades que entendia serem pertinentes ao cargo de Analista Judiciário, como elaborar minutas de despachos, decisões interlocutórias e de sentenças, bem como pesquisa de legislação e doutrina – pugnava pelo pagamento das diferenças remuneratórias entre os cargos.
A decisão em primeiro grau, integralmente mantida em segunda instância, entendeu que as atribuições definidas na Lei nº 11.416/2006 são amplas e sobrepostas; que as tarefas citadas, na verdade, seriam “de suporte técnico”; e que o aproveitamento de um Técnico Judiciário qualificado para exercer funções de maior complexidade atende ao princípio da eficiência da Administração Pública.
Esse caso emblemático ilustra como a própria jurisprudência, ao validar a sobreposição de atribuições em nome da eficiência, constrói a base legal que sustenta a homogeneização funcional observada na prática administrativa dos tribunais, ao mesmo tempo em que impede a isonomia remuneratória.
Em que pese haver reconhecimento da semelhança das atribuições dos cargos, a Súmula Vinculante nº 37 do STF consolidou entendimento para vedar ao Judiciário a concessão de aumento salarial com base em isonomia, solidificando o impedimento legal à equiparação.
A situação entre os cargos do PJU é ainda agravada pela similaridade nos requisitos de investidura, já que a Lei nº 14.456/2022 elevou o requisito de escolaridade para o cargo de Técnico Judiciário ao nível superior, equiparando-o ao de Analista.
A consequência é a acentuação de uma disparidade salarial cada vez mais desprovida de justificativa fática, desafiando os próprios princípios de razoabilidade e eficiência que a administração pública busca seguir.
A Voz da Realidade: O Rosto por Trás das Estatísticas
Para além da análise fria das resoluções, dados e tabelas de lotação que comprovam a homogeneização das atribuições, o sentimento de desvalorização é uma realidade cotidiana que pulsa nos corredores dos tribunais.
O vídeo a seguir, protagonizado por Nathaly Dias Martins, Técnica Judiciária do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais, materializa as conclusões deste dossiê. Ele traduz em um testemunho pessoal e direto o contraste diário entre a execução de um serviço de alta complexidade e responsabilidade, essencial ao funcionamento da Justiça, e a percepção de uma falta de reconhecimento e valorização por parte da administração. A sua fala não é um caso isolado, mas o eco da situação vivida por milhares de servidores que, embora tratados como peças multifuncionais para o atingimento de metas, não veem essa equivalência funcional refletida em sua carreira.
Conclusão: A Realidade Funcional em Xeque
A conclusão que emerge da análise dos dados e documentos é que a Administração do PJU, em sua busca por eficiência e amparada pela política de gestão por competências, consolidou uma força de trabalho funcionalmente homogênea. Essa realidade, onde as competências individuais se sobrepõem às definições formais dos cargos, agora colide diretamente com a estrutura de carreiras e a política remuneratórias vigentes. O debate sobre a revisão do Adicional de Qualificação (AQ) é apenas o capítulo mais recente de uma longa história que questiona a sustentabilidade de se manter “iguais com tratamentos desiguais” dentro do Poder Judiciário da União.
A Resolução CNJ nº 219, que consolidou o modo de distribuição de servidores em todo o Poder Judiciário nacional estabeleceu, para Tribunais de Justiça Comum, a determinação de que as carreiras de seus servidores devem ser únicas, sem distinção entre cargos efetivos, cargos em comissão e funções de confiança de primeiro e de segundo graus, competindo aos mesmos, se assim não estivessem estabelecidos, que se encaminhasse projeto de lei com vistas à unificação de suas carreiras.
Em suma, a Resolução CNJ nº 219 evidencia uma tendência à uniformização das carreiras no Judiciário, refletindo a realidade funcional já observada na prática. Ao determinar que os Tribunais de Justiça comum unifiquem suas carreiras, a resolução sinaliza um reconhecimento formal da indistinção entre as atribuições de seus servidores, corroborando a necessidade de revisão da estrutura dos cargos no PJU para alinhar-se à prática vigente, sendo urgente a questão remuneratória, haja vista questões éticas e de senso de justiça envolvidos.
Referências:
(1) TJDFT. Manual de Gestão por Competências. Brasília, 2021. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/ transparencia/pessoal/modelo-de-gestao-por-competencias
O Cenário no MPU: A Mesma Diretriz de Gestão
A realidade funcional observada no Poder Judiciário da União (PJU) não é um fenômeno isolado, encontrando forte paralelo na gestão de pessoas do Ministério Público da União (MPU). As diretrizes do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), inferidas a partir dos manuais² de “Gestão por Competências”, “Cargos Comissionados e Funções de Confiança” e “Critérios de Distribuição de Servidores”, indicam a adoção da mesma lógica de gestão.
Essa abordagem visa alinhar o treinamento e a qualificação dos servidores diretamente aos objetivos e finalidades da instituição, promovendo o engajamento da “atividade-meio” (suporte) com a “atividade-fim” (finalística). O objetivo é utilizar a competência de cada servidor como um motor para alcançar as metas institucionais, tornando a contribuição individual mais relevante do que o cargo formal. Assim como no PJU, essa filosofia justifica o uso versátil de Analistas e Técnicos, diluindo as fronteiras formais entre os cargos em prol da eficiência.
· Análise de Lotação na Procuradoria-Geral da República
A análise do quadro de servidores MPU, com posição em maio de 2025, disponível no portal da transparência³ do Ministério Público Federal (MPF), demonstra de forma inequívoca a mesma política de homogeneização de atribuições encontrada no PJU. A distribuição de Funções de Confiança (FC) e Cargos em Comissão (CC) revela que tanto Técnicos quanto Analistas do MPU são designados com muita frequência para as mesmas funções, em todos os níveis de complexidade e assessoramento, evidenciando a intercambialidade dos cargos na prática administrativa.
Separando os servidores lotados na “Procuradoria-Geral da República”, encontramos a seguinte composição:
Função | Técnico | Analista |
CC-7 / SECRETÁRIO EXECUTIVO NÍVEL VII | 1 | 0 |
CC-7 / SECRETÁRIO DE COORDENAÇÃO JURÍDICA NÍVEL VII | 0 | 1 |
CC-7 / SECRETARIO | 3 | 2 |
CC-7 / DIRETOR EXECUTIVO | 1 | 0 |
CC-7 / CONSULTOR JURÍDICO | 0 | 1 |
CC-7 / CHEFE DE GABINETE NÍVEL VII | 0 | 1 |
CC-7 / AUDITOR-CHEFE | 0 | 1 |
CC-7 / ASSESSOR-CHEFE NIVEL VII | 0 | 1 |
CC-7 / ASSESSOR ESPECIAL NÍVEL VII | 1 | 0 |
CC-6 / SECRETARIO EXECUTIVO NÍVEL VI | 2 | 6 |
CC-6 / SECRETARIO ADJUNTO | 3 | 6 |
CC-6 / CONSULTOR JURÍDICO ADJUNTO | 0 | 1 |
CC-6 / CHEFE DE GABINETE NÍVEL VI | 1 | 0 |
CC-6 / ASSESSOR-CHEFE NÍVEL VI | 1 | 5 |
CC-6 / ASSESSOR-CHEFE ADJUNTO | 0 | 1 |
CC-6 / ASSESSOR NÍVEL VI | 1 | 9 |
CC-5 / SECRETARIO EXECUTIVO NÍVEL V | 1 | 1 |
CC-5 / DIRETOR | 0 | 1 |
CC-5 / CHEFE DE GABINETE NÍVEL V | 1 | 0 |
CC-5 / CHEFE | 0 | 1 |
CC-5 / ASSESSOR-CHEFE NIVEL V | 18 | 39 |
CC-5 / ASSESSOR NIVEL V | 21 | 29 |
CC-4 / SUBSECRETARIO | 13 | 14 |
CC-4 / SECRETARIO EXECUTIVO NÍVEL IV | 1 | 0 |
CC-4 / DIRETOR | 2 | 3 |
CC-4 / CHEFE DE GABINETE NÍVEL IV | 0 | 2 |
CC-4 / ASSESSOR-CHEFE NIVEL IV | 33 | 24 |
CC-4 / ASSESSOR NIVEL IV | 70 | 93 |
CC-3 / PREGOEIRO NÍVEL III | 1 | 0 |
CC-3 / COORDENADOR | 35 | 29 |
CC-3 / ASSESSOR-CHEFE NIVEL III | 22 | 12 |
CC-3 / ASSESSOR NIVEL III | 27 | 14 |
CC-2 / CHEFE DE GABINETE NIVEL II | 1 | 0 |
CC-2 / CHEFE | 60 | 29 |
CC-2 / ASSESSOR-CHEFE NIVEL II | 22 | 17 |
CC-2 / ASSESSOR NIVEL II | 73 | 38 |
CC-1 / SUPERVISOR | 4 | 5 |
CC-1 / ASSESSOR-CHEFE NÍVEL I | 7 | 6 |
CC-1 / ASSESSOR NIVEL I | 47 | 20 |
FC-3 / CHEFE | 21 | 13 |
FC-3 / ASSISTENTE NÍVEL III | 95 | 40 |
FC-2 / SECRETARIO NIVEL II | 97 | 52 |
FC-2 / CHEFE | 8 | 1 |
FC-2 / ASSISTENTE NÍVEL II | 94 | 19 |
FC-1 / SECRETARIO NIVEL I | 24 | 2 |
FC-1 / CHEFE | 10 | 3 |
FC-1 / ASSISTENTE NÍVEL I | 30 | 8 |
N/C (sem função ou cargo comissionado) | 405 | 264 |
TOTAIS | 1257 | 814 |
Os dados da tabela acima são um retrato fiel da aplicação da gestão por competências na cúpula do MPU. Fica claro que não há uma segregação de funções baseada no cargo de origem. Técnicos e Analistas dividem responsabilidades em todos os níveis, desde as funções de assistente (FC-1, FC-2) até os cargos mais elevados de assessoramento e chefia (CC-6, CC-7). Essa realidade demonstra que a administração pública, tanto no Judiciário quanto no Ministério Público, prioriza a alocação de servidores com base em suas habilidades e na necessidade do serviço, reforçando a tese central de que as atribuições dos cargos de Técnico e Analista são, na prática, sobrepostas e equivalentes.
(2) CNMP. Recursos Humanos e Gestão de Pessoas. Brasília (2017). Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/institucional/comissoes/comissao-de-controle-administrativo-e-financeiro/atuacao/manual-do-ordenador-de-despesas/recursos-humanos-e-gestao-de-pessoas
(3) MPF. Gestão de Pessoas. In: Portal da Transparência e Prestação de Contas. Brasília (2025). Disponível em: https://transparencia.mpf.mp.br/conteudo/gestao-de-pessoas/quadro-de-servidores